terça-feira, 27 de agosto de 2013

experienciando

Me vejo no outro, mas não em mim mesmo
Seria engraçado se fosse engraçado
Quando me olho, o real se afunda
E sobram apenas rascunhos e retalhos do cara que sempre quis ser.
Tédio


marcelozorzeto

sábado, 24 de agosto de 2013

eU SEI, MAS NÃO DEVIA.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp

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marcelo zorzeto

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

memória

 Não fossem fotos e vídeos, o passado nunca teria existido. 
As lembranças se perdem pelo tempo!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A morte deveria se chamar fim da morte.

de frente

dentro do peito
escorre uma oração

o escuro da noite bate
e não sinto o chão

na lágrima
que percorre o coração
encerro a noite

num canto perdido
assim
tateando na fumaça
cerração

marcelozorzeto

domingo, 11 de agosto de 2013

Nuvem

do portão de casa até o mundo
é o tempo do meu silêncio
um quintal de areia e céu
onde piso os pensamentos
distantes do chão ou não
é onde estou e onde cresço
do meu sol vejo a janela que brilha
e da dor é o que mais me esqueço



marcelozorzeto

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ismália

Ismália não é mais a mesma
agora quando enlouquece, sai por aí bêbada
toma Prozac com vinho Chapinha
paga o analista com dinheiro da mãe
sobe na torre da Vivo só pra fazer um charme de doida
e só não pula por medo de não morrer e não acreditar no SUS
marcelozorzeto

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

...

quando ela se viu diante do primeiro abismo
gritou ao Mundo em vão
e acordou cercada de sóis e lençóis e aspirinas

marcelozorzeto