sábado, 16 de janeiro de 2010

na contra-mão



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Será alucinação ou estou realmente morta? Perguntou em frente ao espelho virando-se do avesso. A neblina espessa do lado de fora fazia da visão da janela uma espécie de câmara de gás infinita. Não conseguiu sentir o cheiro do esgoto, que entupido há semanas dava à casa um certo ar de espaço alternativo para almas penadas. Saiu em direção ao quarto de seus pais, que ficava no andar de cima da casa. Nele, apenas um pequeno caderno de anotações jogado embaixo de um abajur velho e cheio de teias de aranha.

O pequeno caderno, com suas folhas já amareladas estava totalmente em branco. A casa onde tinha passado toda sua vida estava vazia, e parecia que já estava assim há dezenas de anos. A neblina formava desenhos através da janela do quarto, as árvores sem folhas raspavam seus galhos no muro em ruínas, num som de angústia. Sentou-se diante da janela, tentou entender o que de fato acontecia, sem saber por onde exatamente começar.

De repente, em sua volta, dezenas de gatos pardos, e de olhos arregalados, paralisados a fitavam sem piscar. Em cada olhar felino havia um sentimento de rancor. O medo a petrificou. Um dos gatos deixou a sala, enquanto os outros gatos, como balões de ar, começaram a flutuar, se transformando em luzes coloridas.

A sensação de estar morta a arrepiava por inteiro, enquanto o medo iniciava sua trajetória enlouquecedora. Sem saber para onde estava indo, ela acompanhou o felino pela escada que levava a um porão, iluminado por uma luz ainda desconhecida. Uma porta feita com várias latas de atum Coqueiro se abre.

Uma outra escada que descia infinitamente, de onde só se podiam ouvir gritos, gritos contagiantes, de alegria e delírio, acompanhados por uma banda marcial que tocava marchinhas de carnaval. Pensou ser carnaval, mas o calendário ainda marcava metade de julho, e sem titubear desceu acompanhando o misterioso gato alado que voou em direção ao fundo do porão.

A escada desapareceu e ela começou a cair numa velocidade alucinante. Prestou atenção e percebeu que não era ela quem caia, mas sim o restante do mundo que subia em uma velocidade de tirar o fôlego. Em posição privilegiada, daquelas que a gente paga muito caro pra se ter, ela assistiu a um verdadeiro desfile de horrores da humanidade. Seria deus um gato? Ou seria ele o demônio? Perguntas ainda sem respostas que já não importavam tanto assim. Assistiu desde da criação, ainda com o mundo dentro de um copo de água suja até seu fim.

E o fim era belo, cheio de nuvens escuras, cor de carvão, com seres alucinados montando seus animais prediletos, ouro e prata eram cuspidos por dragões de cinco patas que mais pareciam cachorros sardentos e cheios de pulga, mas com cinco patas, graças a diversos acidentes nucleares. Steve Wonder regia uma orquestra de trombetas e apitos, e como se divertiam!

E em meio a tudo isso, ela abraçou seus pais e beijou seu namorado como há tempos não fazia, sem saber se eles realmente eram reais, ou se as drogas a tinham deixado “too high” pra entender tudo aquilo. Perplexa, porém comedida, ela abaixou a cabeça entre as pernas, e deixou cair uma gota de lágrima que transformou todo aquele caos em cores lindas e sorridentes. Num número mágico de sapateado, daqueles que a gente só vê na Broadway, o dançarino principal a chamou para dançar e suas pernas, ainda inocentes, aceitaram de imediato.

Ao iniciar o espetáculo formou-se uma grande platéia. Ao fim do show, espantada e satisfeita, eles aplaudiram por horas, até que suas mãos começaram a sangrar e o sangue se transformou em um rio que corria pro lado oposto do sol. Esse rio, ainda em sua nascente desvendava o mistério da vida, do ser e da fabricação das salsichas de hot dog. Rio que se transformava em artéria e pulsava vida rumo ao coração dela.

Ao perceber o engano cometido ao indagar sua existência, ela se retirou, foi até o bar mais próximo, sentou-se, pediu ao garçom uma cerveja bem gelada e esperou pelos amigos, pois queria conversar sobre a vida.

marcelozorzeto