domingo, 20 de dezembro de 2009

Tais saltos e ornamentos




Ela não tinha mais no que se agarrar quando se deparou com um abismo bem em frente a seus pés. Sentiu que a partir daquele ponto não poderia mais seguir em frente e sabia ter em suas mãos uma decisão difícil e delicada. Nem mais um passo poderia ser dado. Olhou para todas as direções e consentiu por um instante poder se tornar um ser alado, pronto pra levantar voo, mas se lembrou naquele momento de que seu deus não havia sido generoso com sua pessoa tão simples, mas hermética.


Clarividente de seus próprios atos, ela fechou seus olhos e gritou. Gritava em direção às pedras que rolavam no espaço aberto, sem saber com tanta certeza se tomaria ou não a mesma direção. Seu grito retumbante soou por algum tempo.

Nuvens a observavam duramente com um olhar bastante repreensivo. Alguns pássaros a encaravam, achando haver algum tipo de concorrência no ar, mas logo a deixaram por sua própria conta e risco. Atordoada pelo seu próprio quase miasma, lentamente levantou um dos pés do chão em direção ao vazio. Era como se entre um passo e outro a eternidade se aproximasse de seu corpo nitidamente finito. A um passo da eternidade... A um passo do infinito... Era muito espaço para pouco corpo o que ela tinha.

Absolutamente certa da decisão tomada, com uma certeza que lhe saltava aos olhos em forma de lágrima, deu o segundo passo sem prender a respiração e flutuou por alguns instantes como um anjo caído já sem as asas. Foram alguns segundos até o fim. Instantes, que aos olhos de quem vê, não duram mais que um beijo dado em quem não se ama mais.

A poesia do momento se eternizou em suas retinas e em seu rosto sereno. Um ar de despedida pairou no frio e úmido silêncio das rochas da praia deserta. Ondas vinham de todas as partes para saudar a nova visitante. Ela já não se importava mais com a recepção e observava tudo com olhos tristes e um certo tom de apatia e desdém nos lábios, percebido também em sua pele pálida e ainda morna. Ao longe, o sol a se pôr no horizonte cor de maçã do amor. Enquanto os amigos, estes sempre atrasados, não chegavam para a última festa, a contemplação se dava por absoluta, por inteira. Por fim só.



marcelozorzeto


a máquina

Não existe evento mais misterioso e contraditório do que o encerramento das atividades da máquina humana. Subitamente o que era transtorno se transforma em alegria. O apito de final de expediente soa, às vezes, antes que menos se espere. Todas as luzes se apagam, o caminho de volta pra casa se dá sem nenhum transtorno. Não há trânsito, enchente, nem meninos pelos sinais. O dinheiro do salário que cai na conta vermelha de sangue cobre todas as despesas e com sobra.

A máquina humana de fabricar vida, já cansada ou não, se deteriora a cada manhã de sol ou nublada. Enferruja aos poucos à medida que seu fluido perde a viscosidade e deixa a carne com sabor de caos. A embalagem de devolução não custa muito mais do que aquilo que é peculiar ao produto, não importando a procedência, origem ou berço. As disfunções marcadas pela vida útil um pouco já ultrapassada são a prova exata de que nada dura, e que qualquer tentativa inútil de se tornar uma máquina melhor que as outras é a mais pura ilusão.

marcelozorzeto

quinta-feira, 2 de julho de 2009

o cio

o ócio e o cio mais todo negócio vil
a dor no meu corpo como adorno para minh'alma
torna-me incrédulo

minha instabilidade emocional, me emociona
vinho que se transforma em sangue tinto
sou metade homem, metade touro - labirinto
o resto é pedra, pedaços de sonho e razão
à proporção exata do meu ser

o ópio é como o pio dessa gente, e não me confunde
é como a prole que cisca o chão e bica o lixo
tem seus pescoços torcidos no terreiro
e provoca náusea a quem se alimenta da carne

a morfina que me alucina os olhos,
as paredes e o sofá no canto do precipício,
queda livre, freio nos dentes, boca aberta na palavra infinita
que o mar nos seja potável


marcelozorzeto

segunda-feira, 4 de maio de 2009

o que é

então, o que é?

não é fácil nem difícil
não é branco nem é preto
não é grande nem pequeno
não é claro nem escuro
não é quente nem gelado
não é par e nem é ímpar
não é domingo nem segunda
não é água nem é fogo
não é ar e nem é terra
não é calmo nem é bravo
não é cheio nem vazio
não é o dia nem é noite
não é lua e nem é sol
não é antídoto nem veneno
não é sopa nem areia
não é amor e nem é ódio
não é verde nem vermelho
não é mato e nem deserto
não é, não é, não é...

não sou eu nem é você
não é mundo nem espírito
não é corpo nem é alma
não é mão e nem é pé
não é asfalto nem é carro
não é sonho ou pesadelo
não é cama nem colchão
não é onda nem maré
não é fome nem é sede
não é perdão nem rancor
não é dinheiro nem ganância
não é sola nem buraco
não é sorvete nem é rosa
não é João nem é José
não é, não é, não é...

não é o não nem é o sim
não é o nada nem é o tudo
não é o infinito nem é a vida
não é a morte tampouco
então, o que é?

Marcelo Zorzeto

quinta-feira, 23 de abril de 2009

às vezes longe às vezes perto
o inverso do avesso, meu devasso começo
coração regresso, cansado, calado
vivo e batendo, batendo, batendo

não sei falar difícil, pode ser que seja vício
burrice, ou qualquer coisa assim
todo verbo, ir ou vir
não me levam a lugar nenhum
chegar e partir, já não me fazem mais chorar

hoje e mais além, sei estar ao sol,
ao sul de algum lugar abaixo do equador
barato infinito, raro e claro
se a verdade mente, não minto pra ela
muito menos pra mim mesmo

o céu de cada dia que nos é dado
o pão de cada dia que nos é negado
rasgo, rogo, rego meu jardim em minha cama
por debaixo dos lençóis uma flor descoordenada

gotas de orvalho descem pelas pétalas
e um rio invade meu quarto na maré cheia
céu cinzento em minha boca
bala de caramelo grudada

 marcelozorzeto

sábado, 21 de fevereiro de 2009

sUsSUrROs NA mULtIDÃo


Quem tem a resposta certa para cada pergunta?
Quem tem a pergunta certa para cada resposta?
Quem sabe o que é certo ou errado?
Quem acerta mais que erra?
Quem sabe reconhecer o erro e pedir perdão?
Quem sabe perdoar de verdade e não se sentir como um verdadeiro idiota?
Quem paga as contas sem ser culpado?
Quem não peca e se considera santo por isso?
Quem sabe pra onde vamos, de onde viemos e o que fazemos aqui?
Quem acredita que um dia tudo vai melhorar?
Quem acredita que seremos redimidos e seremos todos salvos em uma nave reluzente?
Quem reza para seu deus sem perder a esperança?
Quem bebe e espera não ficar bêbado?
Quem acredita no livre arbítrio?
Quem merece ser salvo?
Quem sabe o que é melhor para vida dos outros?
Quem conhece o caminho da felicidade?
Quem sopra vela de bolo e realiza seus desejos?
Quem quer atingir o paraíso?
Quem?
Quem se acha superior aos outros iguais?
Quem pode dizer que está salvo?
Quem sonha em conseguir o sucesso sem passar por cima de tudo?
Quem?
Quem realmente acredita que deus não existe?
Existe?
Quem tem certeza do dia do juízo final?
Quem acha que pode subjugar seu semelhante?
Quem para e pensa nas besteiras que faz na vida?
Quem acredita que não comete erros?
Quem se julga perfeito para não olhar nos olhos?
Quem?

marcelozorzeto