terça-feira, 26 de julho de 2011

A mulher invisível

Às sete horas da manhã de um dia qualquer, Vera chega para trabalhar. Traz na bolsa seu traje de gala azul da cor do mar que ela nunca viu. Estaciona seu carro velho e guarda a frente de seu toca fitas embaixo do banco dianteiro, pra evitar perder o pouco que se tem. As crianças em casa. Ela só pensa em voltar, mas também pensa no aluguel e nas crianças em casa, e pensa na casa e pensa na vida que ainda tem pra levar pelas pobres crianças sem culpa, deixadas em casa.

Às vezes a sensação de ser invisível é. Às vezes, às vésperas de dizer chega, ela pensa, e pensa e as crianças não lhe saem da cabeça cheia de pensamentos de crianças deixadas em casa sem leite pra beber no café da manhã. O elevador quase a deixa para trás, não fosse o homem de óculos. Ele a encara por cima dos óculos marrons e sujos, ela diz bom dia, os óculos não se movem, como se sua invisibilidade lhe saltasse aos olhos. O silêncio no elevador metálico sem espelho é constrangedor e cadavérico. Um "bom dia" não custa nada, ela pensa, pensa também nas crianças que ficaram em casa sem leite pro café da manhã. O pão adormecido e frito na frigideira com margarina foi feito com amor, disso eu sei.

Segundo andar, o homem desaparece no longo corredor sem fim. Ela então se lembra que tinha que respirar. A porta se abre no terceiro andar, onde tudo começa todos os dias. Um "bom dia" tímido é seu cartão de visitas. As poucas pessoas presentes, quatro, só percebem que algo mudou após o aparecimento de um aroma agradável de café que acabara de sair do fogão.

Já decentemente trajada, como um soldado que vai para o front, já conhecendo o inimigo, Vera passa de mesa em mesa e acaricia a superfície empoeirada de cada uma delas, sem se importar com sexo, religião ou cor. A cor de suas crianças não é importante. O pai ninguém sabe... Nem ele sabe. As crianças sabem que a fome não espera, e a hora passa devagar quando se tem fome de comida na barriga.  Vera pensa que a fome faz tudo valer à pena e segura o pequeno terço que carrega no bolso de seu jaleco cor de água salgada.

As crianças ligariam se houvesse um telefone, o orelhão não funciona há tempos.  Alguém grita o nome de Vera, ela se envaidece quando ouve seu próprio nome no meio da multidão. O café derramado ao lado da mesa de café cola o sapato daqueles que passam e nem se quer se importam em desviar o passo. Com açúcar e sem afeto, esfrega, esfrega e o mundo está são e salvo, protegido do bicho-papão. Ela gosta de seu nome.

Cinco horas, hora de descer, espera não ter que encontrar o homem dos óculos novamente, pensa em não viajar três andares mal acompanhada, embora ela o ache muito simpático. Pensa nas crianças que não tinham leite pro café da manhã e lembra que talvez amanhã também não tenham.  Entra em seu velho carro, ano 84, encaixa a frente de seu velho toca fitas e ao som de Tim Maia enche seu coração de esperança. Seu sobrenome é... Qual é seu sobrenome mesmo?

As pessoas da repartição não se lembram do azul do mar, nem mesmo do carinho prestado à fórmica em forma de afetos alcoolizados. Um "bom dia" não tem preço, quase sempre é de graça, muito mais em conta do que o pacote de leite tipo C comprado na padaria do Seu Paulo, mas também muito mais escasso. Suas crianças que quase sempre não tem leite no café da manhã têm bom dia pra dar e distribuir, mas suas barrigas que trovejam feito chuva no sertão, às vezes os faz esquecer a boa e velha prática ensinada pela mãe do mar azul cor-de-roupa-triste-de-trabalhar.  Eles não têm culpa. São apenas crianças inocentes que não tem leite, nem pai, nem tempo de sobra com a mãe, mas são felizes, disso eu sei, assim como sei do pão requentado na frigideira feito com amor.

O telefone toca, são quase seis, fim de expediente, alguém querendo falar com Vera, talvez um novo emprego, talvez algum prêmio que ela tenha ganhado na rifa do fim de semana, querem saber seu nome completo. Não sei. Pergunto a todos em volta, sete, nenhum parece se lembrar, e nem fazem tanta questão assim de se lembrar do nome completo da mãe dos filhos que não bebem leite de manhã e não conhecem o pai, mas são felizes. Do outro lado uma pessoa impaciente e confiante, espera saber o básico, trivial, o nome completo de alguém que tem nome completo, CPF  e gosta de seu nome, mas a decepção ao saber que não sabemos é estarrecedora.

Desligo o telefone. Olho pela janela e vejo o varal de guardanapos e panos de chão. Penso nas crianças é claro, mas penso em como é difícil ser invisível quando não se quer. O pão não é invisível, o café derramado também não. O mar ainda é invisível para Vera.


marcelozorzeto

segunda-feira, 18 de julho de 2011

estou cansado

Estou cansado de fazer concessões, trocar o que eu realmente sinto por uma mentira qualquer que agrade egos inflados e inflamados de pessoas desprovidas de qualquer noção de bom senso ou talento para a verdade.

Estou cansado de abrir mão dessa verdade, pra viver numa sociedade onde as pessoas comem umas as outras pelas costas, com sorrisos amarelos e dentes sujos de traição.

Estou cansado do escárnio, do escândalo, do escabroso comportamento das pessoas que moram literalmente na alma de terceiros, tornando-se assim um peso extra, um olho gordo a sugar a minha vontade de sonhar.

Estou de saco cheio, mas muito cheio, da pequenez espiritual das pessoas que acham que são o centro do universo, e que o mundo tem que rodar ao seu redor em tempo integral, querendo que o público lhes atire pipoca o tempo todo, para provarem pra si mesmos que eles são mais do que nunca foram.

Estou cansado de fazer de conta que é tudo assim mesmo, e que nada pode ser feito, e ficar escondido debaixo da mesa com o cu na mão. Enquanto tudo acontece e nada é feito.

Estou cansado de ser tratado como um verdadeiro idiota, vagabundo e otário, por exibir e sustentar uma opinião, que vai de encontro aos interesses de quem de mim está “próximo”, em troca de migalhas e favores que nem sempre são favoráveis, num jogo mesquinho e doentio.

Estou enojado de ver pessoas que apedrejam pessoas com as quais convivem, também pelas costas, sem o menor pudor, e sempre usam asas postiças para se passarem como verdadeiros anjos diante do reino dos céus.

Eu estou exausto de ver pessoas ao redor rodeando feito um bando de urubus esperando que eu caia,  para poder devorar minha carne e cuspir no prato em que comeram.

Estou cansado de ouvir pessoas me dizendo o que fazer, se elas não sabem nem o que elas próprias devem fazer. Faça isso, faça aquilo e de preferência lembre-se de mim se tudo der certo. O que elas querem na verdade é que você se de mal, pois a minha felicidade pode ser a infelicidade dos invejosos. E ninguém quer que o próximo seja maior, pois não conseguem pisar no que é mais alto do que seus pés.

Estou cansado de ter que provar que sou “legal” e que me encaixo no convívio social, apenas pra que as pessoas me chamem pra próxima festinha medíocre pra elas poderem se mostrar e falar mal daqueles que não conseguiram o convite.

Estou cansado desse preconceito absurdo contra tudo e todos, causado pela falsa moralidade pregada por instituições financeiras que comercializam almas e pedaços do Paraíso em longos financiamentos a perder de vista.


Por essas e outras estou cansado de mim mesmo, de não poder estar no meu corpo cem por cento do tempo. De não poder botar em prática meus planos e meus sonhos mais distantes em detrimento dessa vidinha de merda que vivemos. Sinto falta de quem sente falta do meu espírito, sem mesmo saber se ele existe.

Então se você está cansado, assim como eu, me mostre o caminho verdadeiro, me mostre como ser verdadeiro, me mostre a verdade se ela realmente existe. Impossível? Não. Improvável? Talvez. Covardia? Absolutamente sim.


marcelozorzeto

quarta-feira, 13 de julho de 2011

meu filho, você não merece nada. por ELIANE BRUM

Bem, a finalidade deste blog é discutir idéias, pensar, filosofar etc, ou nenhuma das anteriores. Publico aqui e agora um texto que me chegou através de email enviado por minha querida esposa, Camila Bianchi, e digo que ao lê-lo fiquei impressionado com a clareza e a a pontualidade dos fatos nele apontados. Há muito tempo tenho observado e ouvido de pessoas envolvidas no fato em questão, lamúrias, lamentos e frustrações, e esse artigo genial veio ao encontro e de encontro com essa situação, um tanto quanto comum nos dias de agora. Leiam e releiam, e se precisarem leiam novamente. E depois pense se esse não é você.


A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.


Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI247981-15230,00.html