Às sete horas da manhã de um dia qualquer, Vera chega para trabalhar. Traz na bolsa seu traje de gala azul da cor do mar que ela nunca viu. Estaciona seu carro velho e guarda a frente de seu toca fitas embaixo do banco dianteiro, pra evitar perder o pouco que se tem. As crianças em casa. Ela só pensa em voltar, mas também pensa no aluguel e nas crianças em casa, e pensa na casa e pensa na vida que ainda tem pra levar pelas pobres crianças sem culpa, deixadas em casa.
Às vezes a sensação de ser invisível é. Às vezes, às vésperas de dizer chega, ela pensa, e pensa e as crianças não lhe saem da cabeça cheia de pensamentos de crianças deixadas em casa sem leite pra beber no café da manhã. O elevador quase a deixa para trás, não fosse o homem de óculos. Ele a encara por cima dos óculos marrons e sujos, ela diz bom dia, os óculos não se movem, como se sua invisibilidade lhe saltasse aos olhos. O silêncio no elevador metálico sem espelho é constrangedor e cadavérico. Um "bom dia" não custa nada, ela pensa, pensa também nas crianças que ficaram em casa sem leite pro café da manhã. O pão adormecido e frito na frigideira com margarina foi feito com amor, disso eu sei.
Segundo andar, o homem desaparece no longo corredor sem fim. Ela então se lembra que tinha que respirar. A porta se abre no terceiro andar, onde tudo começa todos os dias. Um "bom dia" tímido é seu cartão de visitas. As poucas pessoas presentes, quatro, só percebem que algo mudou após o aparecimento de um aroma agradável de café que acabara de sair do fogão.
Já decentemente trajada, como um soldado que vai para o front, já conhecendo o inimigo, Vera passa de mesa em mesa e acaricia a superfície empoeirada de cada uma delas, sem se importar com sexo, religião ou cor. A cor de suas crianças não é importante. O pai ninguém sabe... Nem ele sabe. As crianças sabem que a fome não espera, e a hora passa devagar quando se tem fome de comida na barriga. Vera pensa que a fome faz tudo valer à pena e segura o pequeno terço que carrega no bolso de seu jaleco cor de água salgada.
As crianças ligariam se houvesse um telefone, o orelhão não funciona há tempos. Alguém grita o nome de Vera, ela se envaidece quando ouve seu próprio nome no meio da multidão. O café derramado ao lado da mesa de café cola o sapato daqueles que passam e nem se quer se importam em desviar o passo. Com açúcar e sem afeto, esfrega, esfrega e o mundo está são e salvo, protegido do bicho-papão. Ela gosta de seu nome.
Cinco horas, hora de descer, espera não ter que encontrar o homem dos óculos novamente, pensa em não viajar três andares mal acompanhada, embora ela o ache muito simpático. Pensa nas crianças que não tinham leite pro café da manhã e lembra que talvez amanhã também não tenham. Entra em seu velho carro, ano 84, encaixa a frente de seu velho toca fitas e ao som de Tim Maia enche seu coração de esperança. Seu sobrenome é... Qual é seu sobrenome mesmo?
As pessoas da repartição não se lembram do azul do mar, nem mesmo do carinho prestado à fórmica em forma de afetos alcoolizados. Um "bom dia" não tem preço, quase sempre é de graça, muito mais em conta do que o pacote de leite tipo C comprado na padaria do Seu Paulo, mas também muito mais escasso. Suas crianças que quase sempre não tem leite no café da manhã têm bom dia pra dar e distribuir, mas suas barrigas que trovejam feito chuva no sertão, às vezes os faz esquecer a boa e velha prática ensinada pela mãe do mar azul cor-de-roupa-triste-de-trabalhar. Eles não têm culpa. São apenas crianças inocentes que não tem leite, nem pai, nem tempo de sobra com a mãe, mas são felizes, disso eu sei, assim como sei do pão requentado na frigideira feito com amor.
O telefone toca, são quase seis, fim de expediente, alguém querendo falar com Vera, talvez um novo emprego, talvez algum prêmio que ela tenha ganhado na rifa do fim de semana, querem saber seu nome completo. Não sei. Pergunto a todos em volta, sete, nenhum parece se lembrar, e nem fazem tanta questão assim de se lembrar do nome completo da mãe dos filhos que não bebem leite de manhã e não conhecem o pai, mas são felizes. Do outro lado uma pessoa impaciente e confiante, espera saber o básico, trivial, o nome completo de alguém que tem nome completo, CPF e gosta de seu nome, mas a decepção ao saber que não sabemos é estarrecedora.
Desligo o telefone. Olho pela janela e vejo o varal de guardanapos e panos de chão. Penso nas crianças é claro, mas penso em como é difícil ser invisível quando não se quer. O pão não é invisível, o café derramado também não. O mar ainda é invisível para Vera.
marcelozorzeto