quinta-feira, 29 de março de 2012

infância velha

     foto: Camila Bianchi

houve um tempo em que eu era criança
ainda da cor original do pecado pintado do mundo
meu mundo era a minha rua
o sol ainda virgem, amarelo de giz de cera,
o vento, a chuva, e a escuridão, eram amigos descobertos pouco a pouco

aventuras do viver, euforia que não tinha fim
não distinguia o real do sonho
continuidade de um mesmo universo
simples e infinito como quando se é ingênuo
o beijo urgente na menina linda, causava desespero e euforia,
mas nunca acontecia na minha boca real
e misturava os sentimentos atirados sobre a carteira da escola

sinto saudade de ser o que o que nunca mais fui.

marcelozorzeto

sexta-feira, 16 de março de 2012

joão de deus


Essa é a historia de João. João desconfiava de tudo e de todos. Desconfiava mais de todos. Quanto ao resto só lhe restavam dúvidas. Achava que não tinha amigos. E talvez não os tivesse. Vivia com um gosto amargo na boca. Talvez fosse o fígado, e era isso o que todos diziam. É o fígado.

Casado, João amava a esposa que o amava. João não amava muitas coisas, mas amava, e amava também as crianças. E amava os pássaros. E amava o mar. Do resto, quase tudo lhe dava uma aptidão imensa para o ódio, que sempre lhe amargava a língua, e que todos diziam ser o fígado. É o fígado.

João desconfiava de que as pessoas fossem falsas, cheias de segundas intenções, não se sabe se com razão ou sem ela. Aos poucos João tornava-se um ser de pedra e sal. E isso não era bom para ele, e alguém sempre dizia em seu ouvido: João, não seja tolo, a vida é assim mesmo. É a vida! É a vida.

Os pais de João eram casados, mas há tanto tempo, que eles nem se lembravam mais do por que. É a vida! É assim mesmo. João não entendia e tinha medo do espelho. Tinha medo de se ver a imagem e semelhança de seu progenitor. Corria dele, o espelho, como um vampiro. Embora ainda gostasse de alho frito no arroz. Porém não ia à igreja. Deus tinha mais o que fazer, ele não poderia ficar ouvindo os pedidos mesquinhos de criaturas mesquinhas. João não gostava de papas, e nem tinha muitas papas na língua. (trocadilho do inferno) João também não acreditava no inferno. Nem no céu.  

Um belo dia, desses que vemos em comercial de margarina. Não, talvez comercial de cerveja. Quer saber, vamos esquecer os comerciais, até porque o dia não era tão belo assim, aliás, nenhum dia é belo quando se sente a boca amargar às 7 da manhã. Um dia, João acorda decidido a mudar sua vida. O pensamento de mudança já vinha de algum tempo, ele não veio assim do nada, ele apenas resolve por em prática naquela manhã.

João se lembra dos amigos que não tem, e dos que tem também, mas talvez estejam um pouco longe demais pra serem, e até dos que já teve. Respira fundo enquanto escova os dentes em frente ao espelho. Lembra-se da esposa que ama e que também o ama. Pára de respirar quando se lembra que lhe ensinaram que dias assim são equívocos. Dias assim que pensamos nas coisas da vida. Dias em que duvidamos e acreditamos ao mesmo tempo.

Fecha os olhos e os sonhos todos vão pelo ralo da pia junto ao cuspe de saliva e pasta de dentes Sorriso.
João tenta sorrir forçadamente, um sorriso impreciso demais pra lhe fazer acreditar que pode mudar alguma coisa. Nem o espelho acredita nele. O espelho do banheiro é do tamanho exato de seu mundo. Uma foto 3x4 ampliada e em movimento contrário ao da vida de João.

De repente João pensa que a morte às vezes pode demorar mais que o desejado pra chegar e verdadeiramente se aborrece. João guarda a escova e o tubo de creme dental e vai à cozinha com a mais inocente intenção de tomar um café. Toma um café e sai apressado, mas sem pressa de chegar. No caminho do trabalho pensa em como tudo poderia ser diferente. Bate o ponto. Engole o orgulho em sua boca amarga e tenta aceitar que a vida é assim mesmo. É a vida, todos dizem. Mas não era assim para João.

João sabia que a vida poderia ser do jeito que alguém sonhasse que fosse ser. Era só apontar pra direção preferida e partisse rumo a ela. O mais difícil era escolher a direção. Eram muitas. Infinitas. João sempre que pensava em partir em direção a alguma delas, titubeava. Pensava no tempo. Pensava no tempo que passava, no que tinha passado e no que iria vir e passar também. E todos esses tempos juntos pareciam tão poucos pra João.

João não era eterno e nem aeroplano. João era plano terrestre, despido de formalidades. Em seus sonhos, sempre tocava o chão pra não voar. Povoava seus pensamentos com coisas do mundo de lá de longe, mas coisas que pudesse tocar com as mãos e lamber com a língua pra sentir textura e sabor.

João no trabalho era João mais perto das nuvens. Quase nunca estava de corpo presente, sempre passeando pelos pensamentos mais distantes. Dava a sonhar com a vida vivida de verdade. Dava a sonhar com seus sonhos mais reais e sua boca ficava até menos amarga. Sentia gosto de chá de hortelã. Nessas horas sua boca ficava era como mel. Docinha, docinha. Poderia atrair até um enxame de abelhas.

Mas João às vezes disfarçava ser o que era, sendo aquilo que não era.  Era nada fácil viver no mundo dos outros. Não que João não suportasse viver no mundo dos outros, o mundo das coisas compradas, fabricadas e forjadas, ele se aplicava e conseguia até enganar às vezes, mas os habitantes do outro mundo é que eram muito contundentes em suas opiniões sobre João. Era difícil agüentar a pressão de ser de outro mundo.

Hora de ir pra casa e João sente falta do amor de sua esposa. Um sentimento bom o arrebata e arrebenta com seus pensamentos mais negativos. E os sonhos vão juntinhos dele. No trabalho fica apenas a cadeira vazia e uma máquina de escrever desligada. Seu rastro se apaga em segundos. Não fica nem cheiro do perfume barato que usa. Parte com a ideia fixa. Viver a vida que sempre quis. Ilusão ou não. João só quer ser feliz.

                                           fonte: google image
João gostaria de ser uma mosca. É tudo muito mais rápido. Da larva às asas em muito pouco tempo. Tudo intensamente. Sem sapo, sem rã, sem sopa. Poder existir do primeiro ao último momento de existência. Ser amigo do tempo. Quem é João? Ninguém? Todos nós?