quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

dois caminhos

dois caminhos
                           e um gigantesco precipício pela frente, abismo intransponível.
                           duas opções: voltar ou pagar pra ver a altura do tombo.
                           o céu é o limite, mas não sou pássaro, e não sei voar sem asas.

dois caminhos
                          e a dúvida me assola o coração.
                          sou verbo e ao mesmo tempo língua; travada com medo
                          salivando angústia e ansiedade.

dois caminhos
                          e os olhos também são dois.
                          esferas de vidro, brilho alucinado à espera de respostas
                          mas não há perguntas..

dois caminhos
                         os meus pés fincados na lama.
                         começo a pedir para que meu dia termine antes que o sol se ponha.
                         solto mil gritos no ar.
                         abro meu peito.

dois caminhos
                         sou terra e sou fogo.
                         enterro meus antepassados e minha alma em chamas.
                         louco, silencio meus instintos e me aquieto.

dois caminhos
                         a estupidez e a ignorância andam juntas
                         mas disfarçam para abater os mais desavisados
                         os idiotas de plantão.

dois caminhos
                         e como dois e dois são quatro
                         a certeza da escolha me apavora.
                         cresço a cada soco na cara
                         acompanhados de xícaras de café frio e sem açúcar.

dois caminhos
                        e fazer das tripas coração da minha vida miserável
                        (assim como é a todos nós sem exceção).
                        colho o que planto e replanto as sobras do almoço de ontem.

dois caminhos
                        e ainda achar que o mais correto é percorrer o mais fácil
                        sem pensar nas conseqüências
                        que a duras penas nos arrebata sem dó nem piedade.

dois caminhos
                        e o pão requentado da música de Gil
                        é o que mais me consola nesse instante agora.
                        aliás, é o que me faz dormir em paz em noites de tempestade sem chuva.

dois caminhos
                        e uma só vida inteira pra escolher ou não
                        onde quero e onde não quero estar quando eu morrer.

e hoje eu quero estar aqui
                                         corpos
                                                      e almas aqui
sem titubear.
                                    sem me arrepender.

dois caminhos
                                              

marcelozorzeto

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

quase sem

quase sem carne na pele
(quase) sem pinga no copo,
(quase) sem alma no corpo

quase sem riso na cara
                sem bala na agulha
                sem grana no bolso
quase sem chão no meu pé
                sem leite ou café
                sem choro, nem vela
quase sem pinga na cara
                sem carne no bolso
                sem riso na pele
quase sem bala no copo
                sem choro na agulha
                sem grana ou café
quase sem riso no bolso
                sem leite no copo
                sem alma no pé
quase sem carne na cara
                sem bala no corpo
                sem choro ou café
quase sem choro na cara
                sem riso na agulha
                sem pinga no corpo
quase sem alma no bolso
                sem carne no pé
                sem grana no chão
                sem leite na vela
                sem carne na alma
                sem alma na pinga
                sem bala no riso
                sem choro no corpo
                sem bala na alma
                sem vela no copo
                sem corpo na bala
                 
sem bala, 
sem corpo,
sem choro,
sem vela,
sem alma,
sem alma,
sem riso,
sem carne,
sem leite,
ou café.
sem pé,
sem pinga
ou quase sem nada.

marcelozorzeto

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

sem número

eu tenho a sorte do peixe no anzol
da mordida lasciva 
ao gesto uniforme

o que me consome é a vontade no peito
e o desrespeito pelo que sou

a boca ferida
mordida e fisgada

não há palavra frouxa
todas me saem justas e com um gosto amargo 

ferro e saliva, 
verbo esquecido no tempo

no entanto o espanto é só meu e de mais ninguém.


marcelozorzeto

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cacos


Uma garrafa de whisky, meio maço de cigarros e uma cartela de calmante depois, esse foi o tempo necessário que eu levei pra dormir na noite anterior. O silêncio ensurdecedor do meu quarto, misturado à necessidade tamanha de achar uma solução inusitada para meus problemas existenciais, havia transformado as minhas noites em campos de concentração que se confundiam também com o meu dia inteiro.

Lembrava vagamente dos rostos de meus velhos pais, que há muito tempo haviam partido. Sem amarras nesse mundo, sem alguém pra poder compartilhar meus medos, minhas angústias. Confusamente dona de mim, me sentia nascida às avessas, algo que se perdia aos poucos buscando alguma luz perdida no fim de algum túnel também perdido no tempo.

A vontade de gritar era estranhamente sutil e avassaladora. A voz rouca dos cigarros e remédios, agora era pouco usada, lembrando que as paredes já não me respondiam com tanta freqüência. No apartamento ao lado, pessoas conversam, e riem e choram, eu tenho certeza disso, há vida no mundo ao meu lado próximo. Mas ao pensar na chegada da noite, me desespero. Não há fantasmas nem espíritos arrastando correntes. Apenas minha alma estúpida ainda presa a meu corpo neste meu apartamento escuro e úmido.

É estranho me ver morta, mesmo quando se sabe que se está viva. A certeza vinha de minha respiração quente que embaçava o espelho do banheiro, enquanto nos olhávamos em aparente desencanto. Algumas pessoas demoram pra nascer, outras nunca nascem, eu achava. Algumas pessoas têm mais sorte que outras, eu pensava. E seguia respirando sofregamente, olhando para cada canto empoeirado do quarto. O gosto pelo fúnebre me é bem peculiar, aliás, a morte era bem mais palpável e plausível e me caia como um vestido feito sob encomenda, eu achava.

Às vezes um copo de álcool faz toda a diferença entre o ser e o estar, e eu sabia disso. Minha  embriaguez diária não era nem um tipo de fuga da realidade dura e mesquinha fantasiada pelas pessoas. Era apenas um estado sublime de existência. Qual a diferença entre entorpecer-se e encarar a vida enfadonha de todos nós? Qual a diferença entre viver uma mentira e morrer em busca de uma verdade que nem se sabe se realmente há?

O sol da manhã mostra seus primeiros reflexos na cortina fechada. Meu coração dispara por alguns instantes, a provável manhã ainda me causa palpitações improváveis. O cheiro forte de café que é exalado pela lanchonete do outro lado da rua, o barulho dos carros que despertam e saem para trabalhar com seus donos escravizados, o canto absurdo dos pássaros nas árvores da calçada. A famosa vida, como a maioria de nós conhecemos, acorda para um novo pesadelo. E eu desperto para a vida me abrigando em minha cama macia, trazendo comigo as experiências das noites em claro, das garrafas de álcool, dos maços de cigarro e das cartelas de remédio. Enquanto as pessoas adormecem para suas supostas realidades repletas de sonhos inalcançáveis, eu descanso acordada a sonhar com o dia em que irei nascer verdadeiramente para o mundo. Somos verdadeiros seres nascidos aos poucos e pela metade, eu acho.

marcelozorzeto