segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

MOVING BACK HOME


Ela havia trazido consigo suas roupas, seus discos, seus segredos mais guardados, tudo por causa de um grande amor. Mal podia esperar pelo momento que tanto havia demorado em acontecer. Sabia que era sua última moeda, e que portanto, valeria à pena se arriscar. Doze horas tinham se passado desde a última dose de gim quente e a última vez que tinha prometido a si mesma que nunca mais iria se reencontrar com a infelicidade.

Durante anos, ela jurou estar morta, "cadávericamente" viva em seu apartamento vazio de sentimentos, cheio de capas de discos espalhadas pelo chão gelado e úmido, sempre com vontade de tomar mais um café e acender um cigarro barato atrás do outro. Coltrane e Miles Davis já tinham acabado com o resto de orgulho próprio que lhe havia sobrado desde o Revellion de 89. Chato se lembrar de momentos que nasceram para ser esquecidos, mas toda ferida que se fecha deixa a cicatriz exposta para quem quiser ver.

Outra vez era tempo de se sentir inteira, sem sentir o mau cheiro das horas inexatas atrás da porta do banheiro, embriagada e lavada de vômito e solidão. Outra vez era hora de perder as estribeiras e correr a favor do vento sem deixar o medo tomar conta dos olhos e cair diante do desconhecido. Ela sabia que de agora em diante, era se entregar ou ter a certeza de não ter certeza de mais nada.

Havia sobrado apenas algumas mudas de roupas muito usadas e desgastadas pelo excesso de sabão em pó e alvejantes jogados a esmo na máquina de lavar, enquanto fitava seus pulsos pálidos, e aguardava um raio de sol solidário adentrar sua sala úmida para poder lhe salvar de qualquer ato de misericórdia. Era uma manhã ensolarada de sábado, e o vizinho ao lado, ouvia em alto e bom som Billy Holiday na vitrola, enquanto cantarolava fazendo da triste canção de Holiday, uma espécie de caleidoscópio sem cores, apenas imagens perdidas em sua memória e sem nenhuma cor que valesse à pena ser pintada.

Despediu-se de seu túmulo confortável sem olhar para trás, ficaram apenas garrafas vazias de gim e um velho bule que lhe servia de companhia pelas madrugadas frias de chão morbidamente gelado. Ao passar pela porta do vizinho ao lado, apenas dirigiu a ele seu olhar cansado e lhe deferiu um sorriso quente, com sabor de licor de Contreau, que trouxe esperanças e incertezas ao coração do pobre rapaz, ouvinte de Holiday. Ele sabia que seria a última vez que a veria, e estava confuso, sem saber se a abraçava ou simplesmente se trancava em seu apartamento com seus gatos como de costume.

No caminho pensava na vida que levara, e não queria pensar em mais nada. Queria apenas correr para o colo quente e macio que ela ainda nem havia experimentado. No táxi, uma canção monótona de Coleman Hawkins, Angel Face, olhou no espelho retrovisor e tentou em vão se reconhecer nas notas musicais. Seu rosto marcado pelo tempo traduzia em expressões ambíguas sua vontade de saltar do carro e se perder na multidão espessa e caótica que passava pela janela. Tarde demais e no mais a tarde já vinha caindo como um corpo que se atira do prédio mais alto sem saber porque.

Sem roupas velhas, sem discos, sem sonhos, sem vitrola na sala ao lado, havia se perdido dentro de suas explicações sem sentido, sem colo quente desconhecido, sem túmulo confortável. Se tudo isso ainda duraria uma hora, um ano ou o resto dos tempos? É uma grande besteira pensar no agora antes do depois. O que vale é poder sentir o sabor amargo do impossível amanhã.


marcelozorzeto

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Pura ficção



4h30 da manhã e eu aqui olhando para através da janela do meu apartamento, para o relógio que fica na praça do outro lado da rua. 4h30 da manhã e nada do meu inimigo sono aparecer por aqui. Meus olhos queimam,  meu estômago dói, e minha cabeça a mil por hora sem saber pra que lado despencar. Se já houve solidão mais aguda não sei, mas sei que tudo o que eu queria agora era estar profundamente entorpecido por qualquer substância proibida ou não. O dinheiro acabou, e a vontade de saber se ainda vale à pena também. O que me resta eu não sei, mas tentarei descobrir nessas próximas linhas.

Não respiro dentro d’água, eu preciso de ar, e preciso urgentemente. Não fico aqui nem mais um segundo. Gastei toda minha vida, ou qualquer coisa que se pareça com uma, dividindo meu tempo entre o nada e absolutamente coisa nenhuma. Futilidades absolutas que fizeram de mim, um ser vazio. Sou meu próprio sanatório e boteco predileto. Trago em mim a herança de todos os vícios aprendidos nos últimos quinhentos anos. Minha geração é opaca.

Olho agora pro relógio e ele ri de mim, ri me mostrando todos os dentes, brancos como a luz da hora da morte, e eu ainda atrás de algo que me faça descansar em paz pelo menos essa noite. Ah se eu soubesse a fórmula da morte eterna. Você aí, isso, você mesmo, você sabe a fórmula da morte eterna? Ou algo parecido? Mas é só para as próximas 48 horas...

“FUCK THAT BITCH”- Acho que é a TV, pelo menos eu espero que seja, tenho que desligá-la. Se tudo fosse tão simples assim! Com o controle nas mãos sou capaz de tudo, não é verdade? Mato, morro e ainda posso ressuscitar no dia que eu bem entender. A filosofia da noite me cega. E o som dos pássaros me assusta e relaxa ao mesmo tempo.

Sem querer, um raio de sol entra por uma fresta egoísta da janela e queima minhas costas como brasa. Sou todo escuridão. VOCÊ PODE PARAR COM ISSO? O relógio já perdeu seu brilho e as horas desapareceram completamente do visor. É estranho ouvir o som da manhã quando se está sóbrio. O sol derrete o terror das coisas e pinta tudo de laranja e amarelo claro. Como no final de um filme de terror, todos os monstros fogem e uma música suave começa a tocar. Mas a dúvida fica: isso tudo é um sonho de muito mau gosto ou apenas a realidade absurda de uma vida patética e incoerente?


marcelozorzeto

sábado, 16 de janeiro de 2010

na contra-mão



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Será alucinação ou estou realmente morta? Perguntou em frente ao espelho virando-se do avesso. A neblina espessa do lado de fora fazia da visão da janela uma espécie de câmara de gás infinita. Não conseguiu sentir o cheiro do esgoto, que entupido há semanas dava à casa um certo ar de espaço alternativo para almas penadas. Saiu em direção ao quarto de seus pais, que ficava no andar de cima da casa. Nele, apenas um pequeno caderno de anotações jogado embaixo de um abajur velho e cheio de teias de aranha.

O pequeno caderno, com suas folhas já amareladas estava totalmente em branco. A casa onde tinha passado toda sua vida estava vazia, e parecia que já estava assim há dezenas de anos. A neblina formava desenhos através da janela do quarto, as árvores sem folhas raspavam seus galhos no muro em ruínas, num som de angústia. Sentou-se diante da janela, tentou entender o que de fato acontecia, sem saber por onde exatamente começar.

De repente, em sua volta, dezenas de gatos pardos, e de olhos arregalados, paralisados a fitavam sem piscar. Em cada olhar felino havia um sentimento de rancor. O medo a petrificou. Um dos gatos deixou a sala, enquanto os outros gatos, como balões de ar, começaram a flutuar, se transformando em luzes coloridas.

A sensação de estar morta a arrepiava por inteiro, enquanto o medo iniciava sua trajetória enlouquecedora. Sem saber para onde estava indo, ela acompanhou o felino pela escada que levava a um porão, iluminado por uma luz ainda desconhecida. Uma porta feita com várias latas de atum Coqueiro se abre.

Uma outra escada que descia infinitamente, de onde só se podiam ouvir gritos, gritos contagiantes, de alegria e delírio, acompanhados por uma banda marcial que tocava marchinhas de carnaval. Pensou ser carnaval, mas o calendário ainda marcava metade de julho, e sem titubear desceu acompanhando o misterioso gato alado que voou em direção ao fundo do porão.

A escada desapareceu e ela começou a cair numa velocidade alucinante. Prestou atenção e percebeu que não era ela quem caia, mas sim o restante do mundo que subia em uma velocidade de tirar o fôlego. Em posição privilegiada, daquelas que a gente paga muito caro pra se ter, ela assistiu a um verdadeiro desfile de horrores da humanidade. Seria deus um gato? Ou seria ele o demônio? Perguntas ainda sem respostas que já não importavam tanto assim. Assistiu desde da criação, ainda com o mundo dentro de um copo de água suja até seu fim.

E o fim era belo, cheio de nuvens escuras, cor de carvão, com seres alucinados montando seus animais prediletos, ouro e prata eram cuspidos por dragões de cinco patas que mais pareciam cachorros sardentos e cheios de pulga, mas com cinco patas, graças a diversos acidentes nucleares. Steve Wonder regia uma orquestra de trombetas e apitos, e como se divertiam!

E em meio a tudo isso, ela abraçou seus pais e beijou seu namorado como há tempos não fazia, sem saber se eles realmente eram reais, ou se as drogas a tinham deixado “too high” pra entender tudo aquilo. Perplexa, porém comedida, ela abaixou a cabeça entre as pernas, e deixou cair uma gota de lágrima que transformou todo aquele caos em cores lindas e sorridentes. Num número mágico de sapateado, daqueles que a gente só vê na Broadway, o dançarino principal a chamou para dançar e suas pernas, ainda inocentes, aceitaram de imediato.

Ao iniciar o espetáculo formou-se uma grande platéia. Ao fim do show, espantada e satisfeita, eles aplaudiram por horas, até que suas mãos começaram a sangrar e o sangue se transformou em um rio que corria pro lado oposto do sol. Esse rio, ainda em sua nascente desvendava o mistério da vida, do ser e da fabricação das salsichas de hot dog. Rio que se transformava em artéria e pulsava vida rumo ao coração dela.

Ao perceber o engano cometido ao indagar sua existência, ela se retirou, foi até o bar mais próximo, sentou-se, pediu ao garçom uma cerveja bem gelada e esperou pelos amigos, pois queria conversar sobre a vida.

marcelozorzeto